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Fúrias





I PARTE


ADUFADA








        
          Samuel estremece. Não é o frio que lhe provoca o estremecimento das carnes. Está sentado junto da lareira imensa da sala de jantar, bebendo uma aguardente de medronho da sua própria lavra enquanto a mulher acaba de levantar a mesa e deixa a cozinha arrumada depois de pôr a louça na máquina. A parva!, pensa, para que lhe serve a criada? Mas Rosinda detesta ver a cozinha desarrumada quando se levanta para o café matinal e a Micas só chega pelas dez da manhã.

     Não é o frio que lhe provoca o estremecimento das carnes, são os seus pensamentos, a rememoração da disputa com Cláudio, a acusação implícita nas palavras do neto, a premonição do desastre.

        Samuel estremece de novo, algo não está bem, terá de precaver-se. Samuel não sabe que a morte se aproxima sem apelo, que em breve estará banhado em sangue, cadáver retorcido.











1

Segunda-feira, 5 de Janeiro de 2015


From: gena@gmail.com

          Samuel Pedralva estava morto. Quando Cláudio lhe telefonara pensou que se trataria de alguma ferida, sangrenta, mas ainda possível de estancar. Que nada. Morto e bem morto, com o ventre rasgado e as partes cortadas. Uma faca pouco afiada deixara-as pendentes. Assassinado, pois claro.
A aldeia estava isolada, num inverno antigo de neve, a ponte caída, as comunicações incertas – a Guarda não viria tão depressa, a outra ponte obrigava a uma volta enorme.

          Jovem médico, regressado à terra natal por lhe faltar vocação para a cidade e por uma espécie de dever auto-imposto, desde que adolescente decidira que tiraria Medicina, a Martim Freita não faltava curiosidade. Caramba! Quem teria feito tal desmando? Afinal, a aldeia era pequena e, dadas as condições atmosféricas, o assassino tinha de estar ali. À lembrança veio-lhe imediatamente o Albano, mas um segundo depois descartou essa hipótese. O Albano matara, mas em circunstâncias completamente diferentes, em legítima defesa, não se tratava de assassínio. Além disso estava velho. E que proveito tiraria dali? Nenhum. Martim encolheu os ombros: não, o Albano não foi.

          Albano e Matias eram amigos do peito, conheciam-se desde o seio, haviam crescido juntos e juntos tinham ido à escola, trabalhado nos campos, feito a tropa e a guerra colonial, regressado cada vez mais unidos. O que tivessem sido aqueles dois anos e as sequelas dessa passagem das suas vidas foi coisa com que nenhum deles se descoseu. O Roque e a amiga – brincavam as gentes.

         Dois anos depois de regressarem de Moçambique, Matias casou com Clarinha. Tinham ambos namoriscado a rapariga, mas foi Matias quem a levou ao altar. Albano apadrinhou o casamento e na aldeia diziam-se piadas sobre o trio que ninguém parecia levar a mal.

          Numa manhã de Carnaval os dois amigos tinham regressado bêbados de uma rambóia e no café estalara entre eles uma disputa que deixara todos sem fala. De repente Matias sai desaforado: «Eu mato-te!» Albano pagara os galões pingados e fora para casa, sorumbático. Menos de meia hora depois, ouve-se um tiro. Matias fora defrontar Albano a sua casa de caçadeira em punho. Albano ripostara. Legítima defesa e anos de remorso e solidão.

          Mas não era realmente um criminoso. Cometer um crime não faz de ninguém um criminoso e o Albano andava pela aldeia com um ar acabrunhado, uma espécie de pobre diabo bem vestido. Se alguns viam nisso a raiva de tudo o que perdera – além de ter cumprido algum tempo de prisão, pagara uma indemnização brutal à família –, outros viam o remorso sem fim de ter morto um amigo, o melhor amigo. O vexame de ser um marco na aldeia era terrível, a razão pela qual isso acontecera estaria ali para o resto da sua vida. Bizarramente, tornara-se meio surdo, o que dificultava a comunicação, afastava quem eventualmente quisesse conversar com ele e deixava-o ainda mais só com a sua dolorosa memória.

          Clarinha chorara o seu homem, enterrara-o e fora-se, com a barriga de sete meses, viver com os pais em Ovar.


          Depois de telefonar a dar conta do caso à GNR, de providenciar a delimitação de uma área razoável em torno do curral e do anexo e de cobrir o cadáver para evitar que viessem animais ou pessoas contaminar o local e o corpo, Martim entrou na casa grande e foi encontrar Cláudio e a avó, D. Rosinda, na cozinha, ambos sérios e mudos. D. Rosinda cumprimentou-o, Martim ofereceu as condolências como era da praxe. Embora sabendo que Cláudio não gostava do avô, imaginava que uma morte destas, assim violenta, não seria fácil de aceitar. Notara-lhe a voz alterada ao telefone quando o chamara lá a casa.

          Aos 68 anos, a viúva era uma mulher bonita, mas seca e triste, de poucas falas e arredada do convívio na aldeia. Fora ela quem encontrara o corpo quando, depois do pequeno-almoço, dera a sua volta habitual pelo jardim e reparara que a porta do curral estava aberta. Acordara o neto, pedira-lhe que chamasse o médico.
    • Não deu por falta dele?
    • Saiu depois de jantar para o anexo, como de costume. Fui dormir e quando acordei esta manhã vi que não estava. Pensei que tivesse passado lá a noite. Não seria a primeira vez.
    • D. Rosinda, quem poderia ter feito isto? Quem lhe queria mal?
          Sabia lá ela. Ninguém ali lhe era amigo, que ele era um homem de poucas confianças, mas também ninguém tinha nenhuma querela com ele. Além do mais, na aldeia não havia alma que fizesse uma crueldade daquelas, certamente viera alguém de fora ou fora um animal selvagem.

           Martim estava seguro de que os cortes no corpo de Samuel não eram de garras ou dentes. Estranhava que a mulher não tivesse dado por falta do velho antes do pequeno-almoço. Rosinda, contudo, explicou que tomara o seu Valium, como todas as noites, e a dormir ficara até de manhã. Deixá-la-ia em paz, eram questões para o inquérito. «Não podemos fazer mais nada, D. Rosinda. Ninguém deve passar a barreira em volta do curral e é melhor que ninguém entre no anexo até vir a Guarda. O Serafim tratará das cabras como de costume, e há-de arranjar onde as abrigar. Entretanto, se quiser, mando uma das mulheres fazer-lhe companhia, talvez a minha avó». Rosinda recusara: «Não incomode ninguém».

          «O meu marido morreu e não há em mim ponta de tristeza por esta ausência. Vi-lhe o cadáver e foi sem sobressalto, como se estivesse à espera disso há tanto tempo e, tendo acontecido, já não tivesse importância: um desmazelo de sentimentos, de sensações, uma sombra de satisfação – aconteceu. Desejei tantas vezes que se fosse, ou que desaparecesse, que o levasse o vento, que o comesse uma fera, que o engolissem as trevas. Está feito e nem posso desejar paz à sua alma porque paz é o que não desejo que tenha, desejo que arda, torturado pelo fogo do inferno, que vagueie sem destino e na maior solidão que é a de estar apenas consigo mesmo pelos caminhos eternos. Assim o queira Deus e perdoe a minha maldade.»

*

          O burburinho espalhou-se pelo casario e chegou ao centro da aldeia. Os homens enchiam o café que o Hélio abrira excepcionalmente fora de horas. Instalado no antigo edifício duma escola primária desactivada por falta de alunos suficientes, o Foral guardara a escola tal e qual, apenas substituindo as velhas carteiras por mesas e cadeiras de madeira escura, modernizando as casas de banho e transformando em bar a sala de entrada onde antes as crianças deixavam casacos e lancheiras. Até nas paredes deixou as antigas fotografias das turmas, a preto e branco, onde muitas mulheres da aldeia ainda podiam rever-se na infância. Não havia fotografias de rapazes, naquele tempo as escolas eram separadas e a dos rapazes ficava noutra aldeia.
O médico juntou-se aos demais depois de ter procurado o Serafim, único pastor da aldeia, e de lhe ter dado instruções. Respondeu a todos com um bom-dia e, sentando-se ao balcão, pediu café. Hélio serviu-lho.


    • Temos marosca, doutor. Então cortaram-lhe as partes!? Coisa feia! Um homem até se arrepia todo!

          Embora Martim insistisse para que continuassem a chamá-lo pelo nome, muitos gostavam de dar-lhe o doutor, pois fora ele o primeiro a ter-se formado na aldeia e o seu regresso depois do curso, para vir exercer junto deles, aquecia-lhes o coração. De início era por brincadeira, depois tornara-se um hábito carinhoso.



Enquanto bebia o café, Martim tirou do bolso o telemóvel e marcou o número da PJ de Aveiro. Quando o telefonista atendeu, pediu para falar com o inspector Jardim e, com um sinal de mão para Hélio, saiu para a esplanada. Conhecera Jardim através de uns amigos com quem passava por vezes umas noitadas na cidade. O inspector viera de Lisboa, recém-promovido, substituir o que morrera no ano anterior de um inesperado ataque cardíaco (não era velho, cinquenta e dois anos) durante uma perseguição a uns traficantes apanhados a descarregar caixotes da branquinha. Menos densa que nos dias anteriores, a neve continuava a cair.



    • Francisco Jardim. Diga.
    • Daqui é o Martim Freita, Chico. Como é que vais?
    • Oi, Martim. Tudo bem. E tu? Como é que vai isso por aí? A neve fez muitos estragos?
    • Pior que isso, deixou-nos um morto. Temos aqui um assassínio e tens de vir até cá logo que a estrada esteja transitável. Delimitei a área como pude, com estacas e cordas, o homem foi morto no curral.
    • Caçadeira?
    • Paulada e facadas, tem as partes praticamente separadas.
    • Capado?!
    • Meio. Que nem um cão.
    • Foda-se! Quem é o morto?
    • O Samuel Pedralva.
    • Alguma ligação ao Cláudio Pedralva?
    • Avô.
    • Já avisaste a GNR?
    • Já. Mas ganhamos um dia se vieres quando eles, que só vão chegar aqui e telefonar-vos. Jorge, aquilo está feio, o homem sangrou como um porco, acho que não estava morto quando o esfaquearam.
    • Tiraste fotografias?
    • Fotografias?! Não.
    • Tens de lá voltar e tirar fotos.
    • Ó pá...
    • Martim, tens de tirar fotos. Todas as que puderes de todos os ângulos que puderes, do interior e do exterior, porque quando chegarmos já terá passado muito tempo e haverá uma data de pistas destruídas pelo tempo e pelos curiosos. Martim... Conto contigo.
    • Hum...
    • Vou tentar chegar aí o mais rapidamente que puder.

          Martim voltou para dentro e pagou o café. Depois hesitou e pediu um bagaço duplo. Hélio encarou-o com curiosidade e ele explicou que tinha de ir tirar fotografias ao cadáver, precisava de um alento.


        Cumprida a tarefa que Francisco lhe tinha destinado, decidiu ir falar com a mãe, D. Aurora Freita, antiga professora primária, discreta e agradável de trato, por todos considerada uma fonte de saber e sabedoria. Martim, que tinha pela mãe um afecto esclarecido, contava sobretudo com os segredos que ao longo dos anos ela ia recolhendo involuntariamente, diga-se, pois D. Aurora não era de mexericos. Boa alma e cândida, faltava-lhe sentido prático e a sua realidade era filtrada por uma visão cor-de-rosa do mundo. Nem a morte prematura do marido, atropelado por um bêbedo, conseguira abalar a sua fé na humanidade.


*


         Adelina acordou tarde e sentiu como se tivesse dormido o sono da sua vida. Habitualmente levantava-se pelas seis e depois do café começava a lide. Tratar dos animais, das terras. Sol ou chuva, descia e subia com o carrinho de mão até que fossem horas de preparar o almoço. Ouviu a notícia pela boca da vizinha Odete: «Mataram o Samuel Pedralva!», esbaforira aquela.


    • Que o Diabo o leve! – respondera Adelina.
    • Assim seja!

         Àquelas, Samuel não deixava nem saudade nem pena. A bem dizer, nenhumas seriam as mulheres – ou, já agora, homens – que o chorariam. Adelina acabou a tarefa diária de varrer o pátio conscienciosamente, levando a vassoura atrás de cada vaso, a todos os recantos. Depois foi buscar um balde com água e detergente e lavou o chão de pedra, pondo-o a brilhar. Com toda a calma, voltou para dentro de casa e deu a notícia ao marido.



    • E então? Quem foi?
    • Não sei. Tu sabes de alguma coisa?
    • Nada – disse ele e abalou para o Farol.



*



          No café, os homens eram ciosos de palavras: «ninguém o chora, nem a mulher», «miséria», «e porque havia de chorar? alguma vez a ele viste lágrimas?».
Quando Rosinda entrou, fez-se silêncio. Reunindo alguma coragem, viera, vestida de preto como era preceito (tinha guardado o fato dos enterros, como lhe chamava), pedir ao Hélio que lhe vendesse uns litros de bagaço para fazer licor caseiro. Tinha lá muito mirtilo e era uma forma de ocupar o tempo. O neto decerto levaria algum com ele quando retornasse a Aveiro. A vida continua.

         Aos presentes só faltou deixarem tombar a queixada. Os Pedralvas passavam parte do ano na sede do concelho. O seu círculo social era aí que se encontrava, e quando estavam na aldeia Rosinda nunca vinha ao café, nem sequer às festas organizadas pela associação. Apenas no dia do padroeiro acompanhava o marido à quermesse, mas a presença de ambos era curta: o suficiente para a prova dos petiscos e eleição do vencedor. Quase nunca lhe ouviam a voz. Saía de casa para fazer compras, ou a algum restaurante com o marido quando recebiam visitas, davam-lhe a salvação quando acaso a encontravam e só havia mais conversa se estritamente necessário. Havia nos homens medo de provocar Samuel, sempre a lembrar-lhes a diferença de estatuto social, e nas mulheres um mal-estar que as afastava.

         Não era razão Rosinda ser de fora; mulheres de outras partes vinham para a aldeia há muitos anos, casadas com homens da terra, pouco a pouco estabelecendo a sua rede de relações e amizades; era por ser a mulher de Samuel, que a quase todas tinha importunado e a quem elas tinham asco. E também por a sentirem diferente nos modos, no vestir, no porte. Mas agora entrara no café, cumprimentara todos, olhara todos de frente, fizera a sua encomenda, articulara com voz segura a maior frase que alguma vez lhe tinham ouvido. Samuel estava morto e Rosinda acabara de informar a povoação da decisão de aproveitar o resto da sua vida – sem deus, nem mestre.

*

          Um dos mais ricos da terra, embora fosse assunto calado, Samuel fora, em jovem, acusado por uma rapariga que trabalhava nas terras que então ainda pertenciam ao seu pai de a ter violado. Veio a Guarda e a coisa chegou a um magistrado, mas tudo se calou com medo de represálias; a rapariga foi acusada de mentir, com o intuito de se vingar por ele ter repelido os seus avanços, e mais ou menos obrigada a sair da aldeia, dizem uns que com uma mão à frente e outra atrás, outros que com um dinheiro que o velho Pedralva deixara dentro de um envelope em cima da mesa dos pais dela após uma visita breve. Para que se calassem.

       Durante alguns anos sussurraram-se outros casos, mas nunca ninguém elevou a voz como o fizera Raquel. Era como se nada se passasse.

        Sabe-se de Raquel que foi para Viseu, onde arranjou uma casa onde servir, que era o destino das raparigas do campo sem instrução naquela época ainda de miséria e mordaça. Depois conhecera um homem que lhe prometera mundos e fundos, a levara com ele quando a patroa lhe deu voz de saída mal a barriga começou a encher e, quando a criança nasceu, a pusera na rua a vender-se. Puta, pois, como muitas outras. Morreu poucos anos passados de desgosto e das doenças que a vida lhe dera. Enfim, uma história de faca e alguidar como muitas outras a precisar de redenção.
A certa altura, os Pedralvas foram para a cidade durante uns meses e quando voltaram Samuel vinha casado com uma mulher muito jovem e bonita: a Rosinda – 16 anos, coitada! Tão bonita e delicada, mas com tão triste semblante!

          De início, Sindinha acolhera o namoro com Samuel como qualquer rapariga daquela idade, cheia de ideias românticas que lhe vinham dos livros que devorava. Um homem jovem, bonito e bem falante, que a tratava com todas as cortesias, lhe oferecia flores, a levava a passear e ao cinema, onde a sua mão roçara a dela várias vezes provocando-lhe estremecimentos de prazer proibido, aquele homem queria-a para sua mulher e ela obedecera a seus pais pensando quanto a vontade destes estava sintonizada com o seu próprio desejo.

         Filha única de ricos lavradores, os pais tinham escolhido o filho de Armando Pedralva, também ele proprietário de terras, para genro, já que as propriedades precisariam de uma mão de homem para serem geridas quando o pai dela morresse; ora, o pai Pedralva era desde a adolescência amigo do pai de Rosinda, além de que tinham feito muitos negócios juntos, nem todos legais, e juntos tinham enriquecido. Haviam sido esses negócios, de resto, que tinham permitido ao pai de Samuel restaurar o antigo solar da família, que decaíra nas duas gerações anteriores, e amealhar uma pequena fortuna.

          A sua ilusão desfez-se na noite de núpcias.


*


          Foi por Martim que eu soube da descoberta do corpo. Passou cá em casa – visita de médico – com pão cozido pela mãe. O padeiro não consegue chegar à aldeia, claro, e quem coze pão dá aos vizinhos. Aproveitei a boleia, o meu carro não pegava. «Quantas pessoas vivem aqui na Adufada?» pergunto a Martim. Ele não tem bem a certeza: cerca de uma centena.


        Uma centena de pessoas e uma violência destas, pensa Gena. Depois pensa em todas as outras violências quotidianas por toda a parte, ruído de sangue e morte, como agora aqui, ou à escala fantasmagórica das guerras. Quando acabará, se não acabar em cada um de nós? Como dentro de si mesma essa violência que surge sem convocação, a gana de ferir, de pagar na mesma moeda..., de matar?

*

          Uma das vezes em que vim supervisar o restauro da casa que a minha avó me deixou ao morrer, demonstrei um interesse de turista pelo solar e Cláudio convidou-me a visitar a propriedade num dia em que Samuel se encontrava fora, no Porto, para cuidar de negócios.

       A simplicidade das linhas do casarão encobre uma arquitectura interior bem pensada, com pequenos desníveis no solo, criando diferentes patamares, tornando a casa maior do que parece. As divisões são amplas, com janelas enormes de sacada ou portas-janela que deixam entrar uma luz providencial, numa zona em que o Inverno é triste e cinzentão, contrariando a arquitectura tradicional de casas baixas e janelas pequenas que resguardam do frio e do calor. Numa das salas, um recanto com duas paredes preenchidas por estantes cheias de livros. Surpreendida, aproximei-me e bisbilhotei alguns títulos. Cláudio diz-me que é a biblioteca da avó, a quem Samuel, com desprezo indulgente, deixara esse refúgio.

          No exterior, varandas de ferro forjado trabalhadas com desenhos de gosto seguro por um artesão de calibre alegram a fachada. O terreno em redor é vasto. Em volta da casa há um jardim com recantos adoráveis sob caramanchões que no Verão se enchem de flores. Um pequeno anexo ergue-se contra o muro que delimita o jardim a leste. Um riacho atravessa a propriedade e pode-se passá-lo a vau ou por uma ponte construída como uma miniatura de uma ponte romana. Mais adiante, um pequeno prado delimitado a sul por um murete de pedra. Do outro lado, árvores de fruto e, ao fundo, um curral onde Samuel guardava as cabras que ainda tinha gosto em manter – lembrança do tempo de seu pai e da sua meninice, testemunho, quem sabe?, de uma ternura já baça –, cuidadas pelo Serafim, embora o próprio Samuel as fosse ver todos os dias, sempre que ali se encontrava. Diz-se que no tempo da sua juventude era ali que atraía as jovens raparigas e as violava.

          Rosinda apareceu durante esta visita e convidou-me para um lanche de lavrador. A melancolia da avó de Cláudio destilava por toda a casa e entranhou-se em mim. Falou pouco, bebeu connosco uma gota de vinho e, desculpando-se com tarefas inadiáveis, retirou-se. Cláudio seguiu-a e pela porta entreaberta ouvi: «O teu avô não vai gostar.» «Não se pode fazer só o que lhe agrada. Isto tem de acabar».

          Saí de lá indisposta. Era uma propriedade bem cuidada, a casa tinha uma arquitectura agradável e os interiores eram bonitos e confortáveis, mas pairavam fantasmas pelos cantos. Ou talvez o desastre irreparável do fogo consumindo os pais de Cláudio tivesse deixado ali a sua marca e me causasse calafrios.


*

(6)

          As mulheres estão na rua, em grupos, discutindo o que se passou. Calam-se quando me aproximo, mudam de conversa, sinto que a minha presença as embaraça. Digo «até já» e vou ao Foral onde encontro a Armanda.

          Vem sempre mais cedo do que as outras mulheres, gosta daqueles momentos sozinha, corta o som, que a velha Malvina aumentará logo que chegue, da televisão gigantesca, ai as telenovelas, a olhar as desbotadas fotografias de paisagens marítimas que o Hélio pôs nas paredes, aludindo a horizontes mais abertos por ela cobiçados em pecadilhoso segredo.

          Junto-me a ela. Bebemos os nossos cafés, falamos de coisas sem importância, o tempo, os miúdos que não podem ir para a escola, as dores nos ossos, as couves queimadas, as galochas que têm de ser substituídas. De supetão, diz-me por entre dentes que há razões para este ódio a Samuel, que ninguém quer falar disso mas que ele fez coisas que revoltaram toda a gente. Peço-lhe pormenores, algo mais concreto, ela hesita...

Foram muitas as raparigas da aldeia de que ele abusou e todas elas carregam essa cruz. Os homens – numa época em que ainda se pedia que as noivas fossem virgens para o casamento, em que o recato era de lei, em que as mulheres nunca iam sozinhas com um homem, nem para ver o padre – aceitaram esta situação de facto, seja por amarem muito ou por lhes ser difícil encontrar noiva noutro sítio. Calaram a vergonha: «pode ter acontecido a outras, mas não à minha».

          Quando mais tarde lhe relato, sem dizer de onde vêm, as palavras da Armanda, a velha Maria do Amparo quase se zanga: «sim, as raparigas calaram-se por vergonha, mas eles calaram-se por causa da honra. Qual honra é que eu gostava de saber: homens que desancavam nas mulheres e nos filhos têm honra? Diz lá... Que o meu, graças a Deus, era bom homem e nunca nos tocou, mas tive de esperar até encontrá-lo, que eu já estava prevenida contra as violências dos homens.... O meu pai enchia a minha mãe de porrada sempre que estava bêbado, e ele estava quase sempre bêbado. Eu e os meus irmãos trabalhávamos do nascer ao pôr-do-sol e quando atenuávamos era com o pau que nos punha a andar. Logo que pude, fugi, fui para Lisboa servir. Tinha treze anos, trabalhei como uma besta, mas até me parecia o paraíso comparado com a vida que levava aqui. E queres mais? Ainda há por aí quem coma e cale!»
   
          A Maria do Amparo é uma das mais velhas da povoação, sempre sorridente, a contar anedotas brejeiras e a fazer comentários de ordem sexual. É encantadora, infeliz por ter o seu homem paralisado há anos numa cama, cansada dos trabalhos que ele lhe dá, amorosa ainda ao fim de trinta e sete anos de casamento. Recordo-me daquelas feições muito mais jovens, quando eu era ainda uma catraia a passar férias em casa da avó Alice, do seu espírito folião, do seu modo amigável: «Ó Gena, vem daí ver as garnizas, à volta trazes uns ovinhos frescos para a tua avó te fazer umas gemadas». Não é, acho que nunca foi, uma mulher bonita – há na aldeia algumas beldades –, mas tem um porte orgulhoso, muito direita e esticada, olha toda a gente bem de frente, olhos nos olhos, com frieza e coragem.

          Mostrou-me a fotografia do casal em dia de festa do padroeiro, pouco depois de terem casado. Estavam os dois de pé, os corpos encostados num desejo que se quer esconder de olhares alheios, sérios e felizes, um casamento tardio pelos padrões da época. Conta ela que no dia do casamento lhe disse: «se alguma vez levantares a mão para mim ou para os filhos, racho-te ao meio, que ele não era homem para tal, mas ficou prevenido». Deixei-a perdida em recordações, talvez memórias felizes que lhe tornassem mais leve o fadário e o desgosto.

7)

*

          O rame-rame habitual tomou conta da aldeia. Não é fácil viver numa aldeia do interior onde apenas temos a maravilha da paisagem e das estrelas. Há uma solidão que vem da distância a uma maior comunidade. A meia-encosta, a Adufada está rodeada de montanhas, apenas com o fino traço do rio a divertir o olhar. Já houve, mas agora não há, escola. As crianças das quatro aldeias que constituem a freguesia são arrebanhadas pelo autocarro escolar que as leva bem cedo para a escola na sede de concelho e as devolve à tardinha. Também não há mercearia, padaria e outros lugares que são nas pequenas localidades os locais de encontro e convívio. Há um autocarro que uma vez por semana leva quem não tem carro à cidade. A aldeia mais próxima da Adufada é a sede de freguesia, a Trufa, e fica a uns quarenta minutos de caminho. É lá que se vai à mercearia/drogaria/loja de ferragens/loja de rações. E à missa. Não é por toda a gente ter telemóvel que a comunicação se estabelece. Aqui está-se sozinho com telemóvel. Que toca uma ou duas vezes por mês: são os filhos ou outros familiares que falam da França, da Alemanha, do Reino Unido... Ou então alguém que necessita mesmo de dar uma notícia – mortes ou nascimentos.

*
        Passada a surpresa, as conversas agora fazem-se ao sabor dos encontros. Pelas três da tarde, a Adelaide abriu a capela e lá se juntou o mulherio mais velho para o habitual terço. «Rogai por nós, pecadores...» e nalgumas mulheres havia lágrimas de alívio. Noutras um olhar satisfeito: «Seja feita a vossa vontade...»


          Hoje, ao pedirem a protecção e a intercessão da Virgem, foi pela alma de Samuel, mas também de quem o matou. Creio que pelo menos algumas delas desconfiam de quem assassinou Samuel, mas ninguém se descose. São cuidadosas: ele há tanta gente com razões para isso! Contudo, a Felícia foi categórica: «Deus lhe perdoe e a guarde». A guarde. Uma mulher, então?


*

          Quanto a mim, a aventura do dia foram os cães atrás das ovelhas do Manuel Carriço e eu atrás dos cães; tento enganá-los, apanho-os e deixo-os escapar, chamo-os de mansinho e zangada, por fim seduzo-os com uma peça de carne, enfim, uma alegre reinação que me deixou suada e exausta. Os cães adoraram, eu adorei. O Manuel Carriço e as ovelhas, que estão prenhas, é que nem tanto. O Manuel Carriço, carrancudo e feroz, deu-me uma ensaboadela e eu mal podia disfarçar o riso. Voltei para casa encharcada da neve, feliz; os cães, era vê-los pular de contentamento.

          Acendi a lareira, dei de comer à bicharada, tomei um banho quente e estava ao telefone a sossegar o meu pai preocupado com o que se passava na aldeia (ah a internet) quando o Martim bateu à porta. Fiz-lhe sinal para que entrasse e me desse um minuto para me despedir do pater.

         Com o pretexto do pão, o Martim passara o dia pelas casas a fazer perguntas, a catar ressentimentos. Abro uma garrafa de vinho e encho dois copos. Ele diz-me:

  • Isto parece um crime de natureza sexual.
  • O homem tinha setenta e oito anos!
  • E então? Sei de mais velhos sexualmente activos e até tenho alguns pacientes que vêm buscar a receitinha dos comprimidos.
  • Grande coisa, o Prozac! … A Felícia acha que foi uma mulher. Pelo que ouvi aqui e ali, ele era um violador em série.
  • A minha mãe diz que metade da geração dela foi vítima das atenções brutais do Samuel Pedralva, mas não quis nomear ninguém; e a velha Conceição, quando tentei tirar nabos da púcara disse-me que «o que lá vai, lá vai e é melhor não mexer no esterco».
  • É muita gente a querer vingar-se. Porquê agora? Tem de haver mais alguma coisa... E logo ali no curral do outro lado do muro, tão perto de casa... Não receou ser visto?
  • O que me tem dado que pensar é que não parece haver premeditação. Determinação, sim, uma paulada na cabeça e o corte das partes. Um acto impulsivo e trapalhão, basta ver a utilização desastrada da faca. E pode ter sido uma mulher, claro.
  • Talvez, ele já estava velho, sem o poder de outrora, mesmo tendo em conta o teu Prozac, mas ainda assim, uma coisa daquelas requer força, teria de ser uma mulher vigorosa.
  • As mulheres aqui são todas vigorosas, Gena, os trabalhos que fazem põem muito músculo a funcionar. E sabemos muito bem como elas podem ser brutais. Aqui há uns anos a Amélia deixou a Carminha de rastos por causa da rega, quase a matava.
  • Não a matou, mas levou-lhe o marido.
  • Já te contaram!
  • Disse-mo ela. Não deixou foi bem claro se foi uma maldição ou uma bênção.
  • O caso já durava há algum tempo e era do conhecimento geral. Ao que dizem, eram as melhores amigas.
  • Grande amiga!
  • Adultérios e companhia não é só na cidade, ou achas?
  • Não sou assim tão ingénua, ou achas?
          Riu-se. «Estou para aqui a brincar ao Sherlock Holmes, quando não passo dum dr. Watson». O riso transforma-o, fica bonito. Bom homem, trata os seus doentes o melhor que pode e eles vão-lhe pagando, por vezes em produtos do campo como antigamente. É paciente, explica os tratamentos, ouve o que lhe contam; é carinhoso e solícito. As mulheres adoram ter a atenção de um homem novo e prazenteiro e os homens apreciam poder falar com um médico discreto.

         Devo dizer que o Martim é um homem bem apessoado e toda a gente se pergunta como é que ele ainda não casou. Nem se lhe conhece namorada, conquanto tenha sido visto com uma ou outra rapariga ao longo dos anos. Creio que é gay, mas abstenho-me de dar essa opinião, não quero causar rumores. Coisas com que se brinca mas que ainda não têm aceitação na aldeia.

*

          Todo o dia o café esteve cheio e Hélio fez uma boa receita, como só no Verão. O nevão que apanhara todos de surpresa e impedira os homens de irem para os trabalhos fora da aldeia permitiu que todos ali se fossem reunindo para discutir o escândalo, alvitrar suspeitos, apontar culpados e discutir a figura de Samuel, que a todos mais ou menos tinha atormentado e depois de morto era um fantasma assombrando todos.

           Enfim, passou-se o dia a especular, as mulheres faladoras e os homens mais circunspectos. Reparei que sempre que se falava do assunto levavam automaticamente as mãos a proteger as suas preciosas jóias de família. Quem? Porquê? O porquê era mais ou menos claro para todos: o passado finalmente apanhara-o. O quem era difícil de descobrir. É que as mulheres abusadas tinham sido muitas e temos também de contar os homens despeitados, embora saibamos que a eles é mais fácil brigar por uma courela. Mas pode haver outros motivos. Coisa certa é que ninguém o suportava.

*

          Jantei uma canja de galinha, uma canja à maneira, consistente e saborosa. Espero uns minutos e termino a refeição com um pouco da compota de fisális da D. Aurora numa fatia de pão torrada e um copo de vinho. Saio para fumar um cigarro. Do terraço vejo a aldeia, as montanhas cobertas de branco, uma cascata de Natal pacífica e antiga, do tempo dos meus avós, e estala em mim a ideia de que a minha avó pode ter sido uma das vítimas do Samuel. Uma mulher terna e que eu achava superprotectora, sempre de olhos em mim, cujo jugo eu tentava sacudir. Terá sido por causa das violações que enviou a minha mãe estudar em Lisboa logo que acabou a escola primária? Não era comum nesse tempo enviarem-se os filhos, ainda menos as filhas, estudar. Para longe, então...

           Sorte a avó Alice ter a prima Clotilde em Lisboa! Fora para lá servir, encontrou-se semi-escravizada, criada para todo o serviço, sem horário, com folgas ao Domingo de manhã para ir à missa. Na missa conheceu o Adelino, rapagão bonito e desembaraçado que acabara de abrir uma pequena mercearia fina com a herança que o patrão, solteiro e sem filhos, lhe deixara. Casou, passou a ajudar o marido – trabalho duro que deu frutos. Melhoraram a vida, tiveram filhos e foi para ajudar a cuidar do primeiro e depois dos outros dois, em troca do acolhimento, que a filha Linda da minha avó seguiu para a capital com uma bolsa de estudos. Muito mais tarde nasci eu.

P.S. Finalmente, alguma coisa com que alimentar a tua curiosidade sobre este lugar que não conheces. São curtos os dias, as noites surgem rapidamente depois de dez horas de cinzenteira. Isto não te lembra nada? Cai desde há quatro dias um nevão denso e contínuo e os velhos recordam invernos assim há mais de cinquenta anos. Um nevão de que poderia sem restrição apreciar-se a beleza, não fossem as plantações queimadas, os bichos que se tem de abrigar do frio e este crime.
Tinha saudades da neve e isto é uma festa para os meus olhos.
A correria com os cães, fez-me descobrir a falta que me faz dançar. Há quanto tempo não danço! Perder o norte, desligar-se do que está em volta de nós até que o único sentido é o da própria dança. Imparável! Regressamos da viagem para a nossa mortalidade, mas o vislumbre da eternidade permanece e faz-se lembrar, como agora, exige recomeço. Tenho de voltar a dançar.




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2

Terça-feira, 6 de Janeiro de 2015




          A aldeia despertou para um céu limpo, a neve parou durante a noite, a temperatura subiu. Está um vento destemido.

           Fui levar à Armanda uns chocolates que me restavam do Natal e que sei ela aprecia. A Armanda tem dificuldades em movimentar-se, mas obriga-se a fazer a lida da casa e a caminhar todos os dias até ao café; operada às duas ancas e a um joelho, está sem poder trabalhar há sete meses, a receber 170 euros por mês; não fossem os vizinhos e os filhos, pergunto-me como é que ela se arranjaria para viver. Quanto ao resto, viva o SNS que, com todos os seus defeitos, vai tratando toda a gente.

       Confessou-me que foi uma das importunadas pelo Samuel, que nunca o admitira, mas, sabe-se lá porquê!, confiava na minha discrição.

  • Preciso de pôr isto cá fora. Está morto e quem o matou merece um prémio, pena que não tenha sido há mais tempo, saiu-me do peito um peso desmedido. Anos e anos a viver com a recordação das mãos dele, do bafo... Eu tinha doze anos e assustei-me, tremia toda... Anos e anos sempre a olhar por cima do ombro não fosse ele aparecer outra vez. O que me valeu foi o meu primo Sérgio que era um rapagão de vinte anos e trazia uma forquilha na mão. «Saia daqui ou espeto-lha. E quando vir a rapariga dê meia volta e vá por outro lado.»
  • Nunca ninguém disse nem ao padre?
  • Ora, Gena, primeiro era um homem e a gente coibia-se e depois ele era lá da casa dos Pedralvas, comia, bebia, e levava boas esmolas para a igreja. Se fosse agora com este novo padre, as coisas seriam diferentes. Ou talvez não. Também é da época, não achas? Depois do 25 de Abril muita coisa mudou e ainda mais para as mulheres, embora na aldeia ainda haja muito que evoluir, nisso concordo com a Tilde. Pertence a um grupo de mulheres lá em Aveiro. Acham-na maluca, aqui, mas eu gosto de a ouvir. Espero que no futuro as mulheres possam fazer o que quiserem, andar por onde quiserem, sem medo, sem escândalo.
       Que «isto agora é muito diferente de antes, em tudo, e ainda bem» é também a opinião de outras mulheres quando abordo o assunto no café. Os filhos e netos das gerações que conheceram a ditadura já não vão trabalhar para os campos, que nem sequer lhes pertenciam, antes a poucas famílias como a dos Pedralvas, nem para os currais; vão para a escola, muitas vezes para as universidades e os pais melhoraram as vidas comprando ou herdando pequenas parcelas. E agora há reformas, são pequenas mas são alguma coisa, dantes trabalhavam toda a vida e na velhice só podiam contar com a boa vontade dos filhos. Mudaram também as mentalidades: as raparigas são mais soltas, as mulheres esperam que os seus homens ajudem nos trabalhos da casa e arranjam estratagemas para terem mais tempo livre.

          Esta aldeia é a única desta área em que as mulheres vão ao café. Todos os dias, depois do almoço, passam ali uma ou duas horas na conversa. Contudo, continuam a trabalhar mais do que os homens. A Rosa, que é da aldeia vizinha, mas vem todos os dias trazida pelo marido, contou-me com o seu sotaque deliciosamente ciciado como passou a ir à missa, onde não ia há muitos anos. A miúda mais nova andava na catequese e todos os domingos o pai ia com ela à missa; depois ficava à espera que a catequese acabasse para regressarem a casa. A Rosa ficava em casa a arrumar e a tratar do almoço. Ora, o Zeca pediu-lhe que fosse com eles porque não tinha mão na catraia durante a missa. A primeira reacção da Rosa foi dizer que não tinha tempo. Entretanto pensou no assunto e decidiu: «vou com a miúda à missa e fico para a catequese, mas tu ficas a tratar do almoço e com a ajuda das mais velhas arrumas a casa». E assim foi. Um dia em que ela não trabalha, pois quando volta para o almoço já está tudo pronto e a tarde fica livre. Duma assentada pôs o marido e as filhas mais crescidinhas responsáveis pela casa um dia por semana. Obteve a sua folga. Bendita missa.

(9)

*

          Matilde madruga, engole o seu café enquanto prepara os pequenos-almoços e corre a encontrar o seu amor. À porta de casa a mãe trava-a do braço, quer dizer-lhe qualquer coisa, Matilde está impaciente, a mãe deixa cair o braço: «Filha, tem cuidado contigo».

*
  • Porque é que as cabras não barregaram? – pergunto à Marta.
  • Não barregam se conhecem as pessoas e lhes vêm dar de comer e é de noite.
          A Marta é um pouco mais velha do que eu e tem filhos pequenos. Chegou à aldeia com o Joaquim e com dois filhos de um anterior casamento. Não foi muito bem recebida. A mãe do Joaquim, uma velha amarga, não aceitou de bom grado o filho trazer para casa dois pimpolhos de outro homem. Mas a Marta é uma mulher d'armas, que mandou o anterior marido à fava, não só por ser um beberrão (quem não o é nas aldeias geladas das montanhas), mas principalmente por não ter estofo moral: deixou por morto na estrada um rapaz que atropelou, e fugiu. Marta não se deixou intimidar e começou a fazer a sua vida respondendo taco a taco aos insultos e tentativas de intimidação da velha Malvina. Está agora grávida de seis meses, enorme e bonita.

         Marta começou a trabalhar com nove anos, nem acabou a escola primária. Nasceu dez anos depois do 25 de Abril, mas as mudanças demoraram a chegar, ainda demoram. Uma família pobre contente com a oportunidade de menos uma boca e mais um salário, e lá vai a Marta trabalhar longe de casa num restaurante na cidade.

         Aquela optimista diz que só guarda boas recordações desse tempo. Bem tratada pela patroa, que a acolheu em sua própria casa, o salário entregue pontualmente aos pais, mas sempre com uma parte depositada numa conta-poupança que a patroa lhe abrira. Quando saiu de lá aos dezoito anos para se casar tinha uma soma jeitosa para ajudar a começar uma nova vida. Em dois tempos, porém, o pequeno pecúlio, engoliu-lho o marido em copos de três. Trabalhou nos campos e foi umas poucas vezes fazer a apanha da fruta em França. Logo no primeiro ano, aprendeu umas palavras de francês e tornou-se a responsável da cantina: trabalho mais leve e melhor salário. Da última vez que voltou, pediu o divórcio. Conheceu o Joaquim. Os dois filhos anteriores, a Vânia e o Manuel, são do primeiro marido; este que está na barriga é do Joaquim.

         Fico presa da sua redondeza, fascinada por aquele mistério, deslumbrada pela felicidade que adivinho no olhar dela. A conversa, como não podia deixar de ser, gira em torno da morte de Samuel: «Eu sei quem foi, com uma certeza de 100 por cento, mas nunca abrirei a boca. Vi uma catrefa de mulheres sofrerem às mãos de maridos, namorados, homens de pouco respeito. Este aqui, o Pedralva, é como se fosse o representante deles todos. Mataram-no e já foi tarde. Quem o fez só precisa do perdão de Deus; de nós só precisa de silêncio».

*

        De novo estremece Samuel, a morte já o encontrou e ele treme não de frio mas de desolação. É a sua alma que treme, aquela que ele sempre pensou não ter quando vivia. A mesma que ele perdera de vista quando, adolescente, o pai o levou numa noitada entre amigos às putas de Condeixa para o ensinar a ser homem, o mesmo que no dia dos seus 18 anos lhe ofereceu uma virgem a rasgar como rito de passagem à idade adulta. Samuel perdeu ali a sua alma e nunca mais a encontrou. Treme ela agora e ele não sabe como ampará-la. Nunca o saberá. Morreu e foi amaldiçoado por Rosinda. Errará «na maior solidão que é a de estar apenas consigo mesmo pelos caminhos eternos».

*

          O perdão de Deus. Tantas vezes ouço isto! O perdão de Deus, o perdão dos homens. Terá Samuel buscado o perdão de Deus? O perdão dos homens decerto não procurou ele. Quanto a perdoar a si próprio... Talvez haja quem consiga fazê-lo, não há pecados imperdoáveis. Ou haverá? Como viver com eles? Esquecemo-los por vezes, mas mais tarde ou mais cedo regressam persistentes, não há olvido permanente a menos que a loucura nos envolva, e ainda assim, quem sabe se a loucura não é uma forma do remorso? E voltamos ao início: Deus! O que não nos traz a paz de espírito que esperamos, porque como podemos saber se, existindo Ele, de facto fomos perdoados? Ou então Deus é mudo. Ou seremos nós que não O ouvimos? Que o ruído dentro de nós (que não sabemos já fazer o silêncio) se sobrepõe à Sua voz?

          Perguntam-me muitas vezes aqui na aldeia porque não vou à missa. Não há aqui vivalma que não vá, pelo menos na Páscoa. Que iria eu lá fazer? Respondo simplesmente que vou à igreja quando quero, não com hora marcada – o que não sendo a verdade, também não é inteiramente mentira.

       Talvez Samuel tenha sido perdoado ou talvez não. Terá dado algum sinal de arrependimento ou remorso? Que sabemos nós das almas dos outros?

P.S. Todo o dia estive com uma sensação singular e pus isso na conta do homicídio. Só agora percebi que se devia ao silêncio dos cães. Costumeiros das ruas, em liberdade, pois aqui não são precisos trelas nem açaimes, mais ou menos acarinhados por toda a gente – este frio fez com que os donos os recolhessem portas adentro. É quase como o silêncio da noite. Os meus, herdados da minha avó, dormem sempre dentro. Habituaram-se a dormir na minha cama, acordam-me com narizes frios e lambidelas quando acham que já dormi demais.
Está outra vez a nevar, mas são fiapos, talvez amanheçamos com sol. São duas da manhã e preciso de ir deitar-me. Não é só o sono, esse grande reparador de infortúnios, que me está a chamar; são os sonhos, as fantasias naquele estado de sonolência entre o estar acordado e o estar a dormir. Sonhos e fantasias reparam as fissuras do dia, rejuvenescem a mente, preparam o chão do dia seguinte, esse chão onde encontraremos o mundo e os outros, vivos mais uma vez.


                                                                                                                                           


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